rodou duas vezes a chave depois de bater a porta. tirou os sapatos gastos de pisar dias e arrumou-os à entrada. abriu o velho frigorífico. fechou-o. aqueceu a comida feita há dias e que lhe vai forrando o estômago nas noites, e acendeu a televisão. sabia de cor o que passaria em cada canal desde a precisa hora em que se sentava no sofá até àquela em que desligava o aparelho. ria, chorava, apaixonava-se e julgava-se igual às personagens que lhe preenchiam as noites. vivia por substituição. de vez em quando o telefone tocava. e aí vestia a sua personagem de mulher independente e dizia.
- está tudo óptimo
mas a verdade é que há muito que não sabia o que era afinal estar tudo bem. perguntavam-lhe e a resposta saia maquinalmente.
- está tudo óptimo
o emprego certo, o dinheirinho ao final do mês, a casa alugada nos subúrbios da velha cidade, a missa aos sábados, os almoços em família aos fins-de-semana, o passeio de tarde aos domingos
- está tudo óptimo
a voz segura, as certezas nas palavras, a atitude madura, os passos certeiros
- está tudo óptimo
as onze horas e trinta minutos a bater no relógio avisavam-na da hora de dormir. obedeceu. maquinalmente carregou no botão off do comando da televisão, pegou no pequeno tuppeware de etiqueta amarela que reservara no fim-de-semana para o dia seguinte
- cozido à segunda, estofado à terça, sopa à quarta, umas sandes à quinta. e sexta logo se vê, talvez vá àquele restaurante perto do trabalho. dizem que fazem lá uns bifes muito bons.
apagou as luzes e fechou os olhos. dormiria oito horas certas, sem sonhos (a rotina é a sanguessuga dos sonhos). amanhã recomeçaria tudo outra vez.
- (está tudo óptimo).
Por isso, disse para mim mesmo que tinha de levar aquele.
Porque o Pai dizia que os relógios matam o tempo.
Dizia que o tempo está morto enquanto se for esgotando
no tic-tac de minúsculas rodas de engrenagens;
só quando os relógios páram é que o tempo ganha vida.
Os ponteiros estavam estendidos, não rigorosamente na horizontal,
mas com uma ligeira inclinação, como uma gaivota planada ao vento.
Prenúncio de tudo o que me costuma entristecer,
como a Lua nova é prenúncio de chuva, como os negros dizem.
Foto: Katia Chausheva
Excerto: William Faulkner
9 comentários:
o som e a fúria?
estou esmagada. perplexa. eu sei lá.
(isto está lindo lindo lindo! e quem é que canta lá em baixo?)
aiiiiieeeeee!
:) Fenomenal:)
Amei,adorei.. boa escolha=P
Beijinhos e sorrisinhos grandes:D
Sábio, muito sábio...
*
belo muito belo
e sábio como
belo e
belo como
renovar...
estas roupas novas ficam-te bem...
abraço
Adorei o novo design.lindo :)
Vertigo: Brigadaaaaa :) Beijo menina!!
Ninguém: prova de que as coisas simples são sempre as mais bonitas :p Beijo!
Un dress: Ora aí está uma BELA palavra: renovar :)
Eyes Wide Open: From my favourite book :)
Por entre o luar: Beijinhoooo menina sorridente :)
Vanessa: As I told yesterday, sim, Som e a Fúria! E lá em baixo é uma menina linda a cantar :) Beijinho
A minha certeza é precisamente essa...a rotina é a pior inimiga dos sonhos e no fundo da felicidade!
Simplesmente belo e sábio! Adorei, assim como do novo visual!
Beijinhos!!!
Canelita: Deitamos então a rotina para dentro de uma caixa, fechamo-la à chave, pomos aqueles óculos em formato de coração (à Sweeney Todd) vernelhos, e vamos passear pela ria. Vale?? ehehehe. Beijinho.
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