'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

02 junho, 2007

Lembranças - 6ª edição do canto de contos

O tempo, conforme um muro, uma torre, qualquer construção, faz com que deixe de haver diferenças entre a verdade e a mentira. O tempo mistura a verdade e a mentira. Aquilo que aconteceu mistura-se com aquilo que eu quero que tenha acontecido e com aquilo que me contaram que aconteceu. A minha memória não é minha. A minha memória sou eu distorcido pelo tempo e misturado comigo próprio: com o meu medo, com a minha culpa, com o meu arrependimento"

(Escrevo-te estas linhas contrariada. Mais uma vez venceste. Pediram-me que dedicasse um texto a alguém importante na minha vida. Sabes que não queria escrever sobre ti? Não queria. Eu nunca soube escrever sobre ti. Muito menos para ti. Sentia-me ridícula, como nos sentimos quando deixamos o coração falar. Sem figuras de estilo.
Mas venceste-me porque fazes parte de mim. És o pedaço mais importante. O resto, até ti, são apenas lembranças do que fui um dia)

Lembrança 1:
Era um ritual de todos os dias depois do almoço recheado em casa da minha avó. A minha mãe e as minhas tias iam ao café da aldeia, a pé, comigo atrás. Não deveria ter mais de dois anos. A idade das primeiras recordações. Foi num desses passeios de início de tarde que soube que ia deixar de ter as atenções todas viradas para mim. A Maria João, minha prima e futura companheira de infância, vinha a caminho.

Lembrança 2:
Os dias sempre foram muito diferentes das noites na minha vida. Era quando o sol ia alto que eu ficava horas a jogar dominó com o meu avó, a plantar cebolas. Era quando ia para a escola, onde fazia os presentes para as datas especiais. Como o dia do pai.
Nessa noite não me escondi no quarto quando ele chegou, não apaguei a luz, não fingi que dormia. Saí do quarto e enfrentei a meia dúzia de metros que me separavam da cozinha. (Acho que comecei aí a perceber a história do caminho para o Calvário que tantas e tantas vezes ouviria nas manhãs da catequese) E entreguei-lhe o presente. Uma pisa papéis, acho. Não me lembro bem. Recordo-me apenas do
- Para que é que isto serve?
E do atirar para o chão. E dos estilhaços. E das lágrimas a escorrerm-me pela face porque mais uma vez o desiludia. Porque me faltava o pai sentado à mesa. Em vez disso, tinha um vulto de ódio, quase o monstro dos contos de fadas que lia às escondidas.

Lembrança 3:
Estava nervosa
- a inquietação dos 14 anos
Estava nervosa porque ele estava lá. Como estava o meu medo de desiludir - acho que continua comigo. E aconteceu. Tornei-me adolescente.

Lembrança 4:
Capas negras, fitas com afectos inscritos e os amigos de bebedeiras, risos, lágrimas, trabalhos de grupo, noitadas, abraços, presenças. e uma tristeza sem fim pela impossobilidade de voltar, pela falta que já me fazias, embora eu ainda não o soubesse.

Lembrança 5:
O despertador não tocou. Eu estava atrasada, muito atrasada e faltava-se a borboleta para o cabelo.


(Lembrança 6:
Sabes por que te escrevo, afinal? Porque não existes. Porque te criei no interior da minha mente. Porque, ainda assim, és o meu amparo, o meu chão. És as minhas lágrimas e as minhas saudades. Porque não acredito em amores serenos, rotineiros, sem pressas. Porque és o meu céu. Porque a lembrança de ti - do teu cheiro, dos teus olhos pousados nos meus, das tuas mãos e do teu toque - é a única coisa que ainda me faz voar)
[Excerto: José Luís Peixoto
Foto: Augusto Peixoto]

14 comentários:

Anónimo disse...

Lembranças que se atrelam aos dias que se arrastam... E como pode algumas coisas ser tão nossas que todo mundo sente a mesma coisa, penso que quando se fala com o coração, somos tão nós que ficamos perdidos...

Há sempre um caminho, mas todos ainda carregaremos as mesmas saudades...

Gostei de tudo.

:*

Teresa Durães disse...

quando se pesca a ponta dos anos, lembramo-nos de tanta coisa: umas que ferem, outras monótonas, outras vazias. Tendencialmente esquecemos as gargalhadas, sabe-se lá porquê.

Existe sempre esse tal amigo, mais deliniado, projectado em alguém, precisamos de um apoio para os terrores do crescimento.

um dia vem a compreensão (se a queremos) e tornamo-nos plumas que voam com o vento

gostei

boa tarde

Beatriz disse...

desculpa só ter vindo agora. queria ter vindo logo, ler com vontade e deslumbrar-me com a tua sensibilidade. so pude vir agora, e não me desiludiste. pelo contrario, surpreendes-me sempre, porque tens uma sensibilidade blindada de franqueza e frases nitidas que não escondem os significados que têm.
Lembrança numero mil: existem rosas que perderam os espinhos, ainda se lembram deles mas ganharam, mais que beleza, espessura e resistência.

joão marinheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
joão marinheiro disse...

Sublime!
Abraço daqui onde as memórias se entrelaçam nas palavras...

Andreia disse...

Bill e João: Obrigada... :)

Teresa: Sim, tens razão. Vamos esquecendo as gargalhadas. Acho que gostamos de sofrer... Não sei...

Beatriz: Tu é que me surpreendes, sempre. Quanto às rosas, acho que mesmo quando não perdem os espinhos, ganham resistência. Aliás, especialmente quando não os perdem... Um beijinho grande!

CNS disse...

Emudeceste-me.
Gostei muito. Muito.

Andreia disse...

Muito obrigada Cristina :)
Um beijinho!

Bruna Pereira Ferreira disse...

Eu, de facto, não sei o que te dizer, Andreia.
Não sei, porque sabes bem que a opinião muda, as coisas mudam, o tempo muda, a vida muda e há lembranças que não mudam eu não sei porquê, mas é isso e a minha opinião não interessa para nada. São lembranças nossas que guardam pessoas lá dentro, bem dentro e bem fundo. No nosso mar, com uma pedra atada que quando se move, espalha areia, a água fica turva e a verdade deixa de ser transparente e cristalina... Há peixes às cores que vão morrendo, também não sei porquê e tu sabes que não se sabem estas coisas, mas sim. O mar existe.

Bonito mergulho, o teu. Tu.
Um abraço forte, sem pedras, sem areia, de mim. Eu.

:)

Mateso disse...

As memórias, são caules de sonhos de vidas desejadas ou vividas em tempos e lugares onde a verdade e amentira são flor única do passado.
Tocante... muito.
Bj.

Andreia disse...

Bruna: Sim, tu és um abraço forte, sem pedras e sem areia. Ainda bem. :)

Mateso: Sim, no passado verdade e mentira misturam-se. Obrigada ;)

Um beijinho aos dois!

V. disse...

Escrevo-te contrariada. Porque não sei escrever para mais ninguém ainda que não saiba dizer nada de ti. Não faz sentido, eu sei. Porque as lembranças se confundem entre os dias e as noites e já nada será igual. Porque não sei o que aconteceu. As borboletas na barriga não chegaram para enfrentar a meia dúzia de metros que nos separavam. A cozinha ali tão perto e tu já tão longe. De mim e dos outros. Presentes que não consolam os estilhaços de vida perdida em lágrimas. Lembranças. Só isso. Recordações. Não me peças mais nada. Porque de ti já nada sei. De ti só conheço o medo. O medo de te perder um dia. E as borboletas no estômago a afastarem-te de mim. Sempre. Desde sempre. Porque sei que cresci. E a meia dúzia de metros cresceu comigo também.

(...)

Desculpa a divagação...

Muito bonito o que escreveste. E era só isso que eu queria dizer. Mas isso tu já sabes... só escreves coisas bonitas.

Beijinhos*

Andreia disse...

E tu és bonita, Vanessa. Mas isso também já sabes :)

Obrigada!
Beijinho.

Vlademir Castelo disse...

De todas as maravilhas que já ví em um blog, jamais encontrei um como esse, que além de prender minha atenção, fico maravilhado de ver tanta beleza e coisas escritas emanando tanto amor. Continue assim, pois vc nôs presenteia com um pouco desse amor. bjs...

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