setenta anos, entrevada de solidão amarga,
descendente de fotografias emolduradas sobre os móveis.
Sou os brincos de ouro, guardados para uma ocasião
assinalada no calendário da cozinha.
Sou as revistas do Padre Cruz a chegarem todos os meses,
como marés de rezas e nomes beneméritos.
Sou a fome e a sede, de manhã e à tarde. Sou a sede à noite,
já depois da telenovela, antes das molas da cama,
antes da escuridão reflectida pelo espelho oxidado do armário.
Sou o copo de água que pouco sobre um napperon de renda,
na mesinha-de-cabeceira, coberto por um pano bordado.
Foi a minha mãe que me ensinou a fazer renda, pensando
que me ajudava. Há noites em que acordo a meio a sonhar
com a minha mãe. Bebo água e só adormeço depois de
sentir a sua voz a dissolver-se.
Eu sou eu sempre, trinta e um anos, quase trinta e dois,
mas sou também os óculos de lentes escuras, os dedais,
sou as gavetas e os lençóis dobrados no fundo da arca,
sou o serviço de chá.
É preciso regar as plantas. A telefonia só dá música estrangeira.
Os pombos comem as migalhas que lhes deixo no parapeito.
Eu sou eu sempre, mas sou também o eco de um eco.
Eu sou eu sempre, mas sou também eu e eu e eu e eu e eu.
Eu sou eu sempre, o silêncio, mas sou também a Dona Adelaide,
e dou corda ao despertador, não pelas horas certas, não interessam,
mas porque é o ponteiro dos segundos que mantém o meu coração.
Eu sou eu sempre, alguém, mas sou também a Dona Adelaide,
e, tantas vezes, quando ouço chamarem, viro-me de repente e
percebo que era apenas a minha voz a falar comigo própria.
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Os teus lábios parados eram a noite, o abismo
e o silêncio das ondas paradas de encontro às
rochas. O teu rosto dentro das minhas mãos.
Os meus dedos sobre os teus lábios e a ternura,
como o horizonte, debaixo dos meus dedos.
Os meus lábios a aproximarem-se dos teus lábios
a aproximarem-se dos teus lábios a aproximarem-se
dos meus lábios, teus lábios.
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Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.
Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.
Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.
Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa
evidência me matar agora.
E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:
porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:
sabes que horas são?
Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavras
a despegarem-se dos pesadelos.
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Havia o espectáculo, os actores maquilhados,
havia a expectativa pronta a ser iluminada.
Havia as cortinas vermelhas, as sombras
e um balde de sangue.
Mas ninguém apareceu. Ninguém
comprou bilhete. Ninguém quer assistir
à nossa tragédia/comédia.
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José Luís Peixoto
6 comentários:
Post mais que perfeito*
Amei ler:)
Beijito e sorrisinho*
sentires
sem
ti
sentimentos
lamentos
dores
lamentos
porque não?
aqui...
tenho que comprar o "gaveta de papéis"...
beijinhos
:) é sempre muito bom lêr-lo..é viciante, cativante... quem o descobre nunca mais o larga!
Adorei
Beijinhos
Um mimo:
http://www.youtube.com/watch?v=kzqoC74D8_U
...e isto sim, é genial!!
S.: Que bonito! Obrigada :) O que eu queria um giro-discos como este que aparece nas imagens... Ia ao Mercado Negro e comprava os vinis todos que estão lá :D Beijinho!
Canelita: é verdade menina :) este homem é um achado!!! Beijinho grandi!
Ninguém: Não te vais arrepender de certeza. Para além dos poemas muito muito bons, o livro tem uma construção tão fora do vulgar que só podia ter sido feito por quem foi :) Bj.
Ivone: memórias... ***
Por entre o luar: hihihih. Isso é porque o JLP é perfeito :D Beijinhossss
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