'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

16 janeiro, 2008

No pé de cabeceira II - A dor do amor


Mulher. A tua pele branca foi um Verão que quis viver e me foi negado. Um caminho que não me enganou. Enganou-me a luz e os olhos foscos das manhãs revividas. Enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui, a correr pelos campos todo o dia, a medir as searas pelo tamanho dos braços abertos; enganou-me um sonho de poder ser o filho que fui no teu homem e no teu rosto, no teu filho, nosso. Não há manhãs para reviver, sei-o hoje. Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. Inventei-te talvez, partindo de uma estrela como todas estas. Quis ter uma estrela e dar-lhes as manhãs de julho. As grandes manhãs de julho diante de casa e a minha mãe a acabar o almoço bom e o meu pai a chegar e a ralhar, sem ser a sério, por o almoço não estar pronto e eu sentado na terra, talvez a fazer um barroco, talvez a brincar com o cavalo de cartão. Tive um cavalo de cartão. Nunca te contei, pouco te contei, mas tive um cavalo de cartão. Brincava com ele e era bonito. Gostava muito dele. Tanto. Tanto. Tanto. Quando o meu pai mo trouxe, dentro de um embrulho verdadeiro, e comecei a desatar as guitas, queria abri-lo depressa; quando o vi, as pequenas orelhas levantadas, os olhos brilhantes, parei-me à frente dele. Foi o meu país durante uma semana, acreditas?; aquele cavalo singelo de cartão foi o meu país durante uma semana. Mas num sábado, deixei-o na rua. O meu pai chamou-me para uma coisa, a minha mãe chamou-me para uma coisa e esqueci-me. Acreditas?, esqueci-me do meu cavalo no quintal, como foi possível?, como não me lembrei?, como é que as pessoas esquecem assim o que prezam?, esqueci-me do cavalo de cartão no quintal, como pude dormir?, como pude assentar os lençóis sobre a respiração e dormir?, como pude simplesmente dormir?, esqueci-me do cavalo de cartão no quintal, acreditas? E nessa noite choveu. No domingo de manhã acordei com um relâmpago espetado no olhar e um trovão a ressoar no peito, o cavalo de cartão?, corri para o quintal, atravessei a cozinha em cuecas e com a camisa interior, corri e, descalço, entre as poças de água limpa e a terra húmida e as folhas das árvores a segurarem gotas suspensas no ar, no quintal, o cavalo de cartão estava onde o deixara. Um monte amorfo de pasta de papel, onde se distinguiam dois olhos tristes de diamante, a tinta desbotada a pintar o chão e as pedras. Ajoelhei-me sobre ele e chorei. Aquela manhã. Chorei. Foi o meu pai que me tirou de lá. Para ti, para o nosso filho, para mim, quis um cavalo de cartão, sem a chuva. Um idílio impossível, sem a culpa que não se pode evitar. A culpa que tu e eu não tivemos. A condenação certa por existirmos. Conforme um precipício no fim de uma corrida: os corredores a terem de vencer e a meta a ser a linha de um precipício. Ou uma faca suspensa sobre nós, uma faca que se nos enterra nas costas, para sofremos ou nos levar sofrendo. Não escolhi este destino. Escolhi estradas desconfiando que todas eram a mesma. Não escolhi estradas, como não escolhi esta. Não escolhi esta noite que me faz voltar à vila, que me faz voltar à venda de judas e procurar o sorriso postiço do demónio. Esta noite a andar com as minhas pernas e a obrigar-me, a fazer-me voltar ao gigante. E tu sabes tão bem que não quero, sabes, como sabes o teu nome e outros assuntos evidentes, sabes que não quero e não escolhi. É verdade que vou. Caminho e quem me veja imagina-me a vontade. A minha maneira de andar é exactamente a minha maneira de andar. Não escolhi, não quero, mas não vou contrariado. Sei que é impossível não ir. É impossível não ir. Impossível não ir. Impossível. A cadela segue-me e, entre o remoer dos meus passos demorados, distingo as patinhas breves da cadela. Na escuridão, as cigarras desenham a lonjura das planícies com o seu canto. Penso: um castigo é a vida, um castigo sem falta ou pecado, um castigo sem salvação; a vida é um castigo que não se impede e que não se consente. Imagino-te a ver esta noite da varanda dos meus olhos, a entrares nesta floresta de mil estrelas por contar, estas estrelas que não chegam para iluminar a terra, mas que iluminam pequenas circunferências no céu à sua volta. Imagino-te a ouvires-me enquanto se calhar embalas o menino com essas cantigas com que o teu pai, quando eras pequena, te adormecia e que assobiava no telheiro à tarde.
Filho. Gostava que houvesse uma aragem qualquer que me explicasse esse teu sorriso e outra que te explicasse, sem te magoar, o meu silêncio. Gostava de aprender o trejeito dos teus lábios, a maneira dos teus olhos, e to lembrar quando tivesses a minha idade. Fui um dia a tua inocência. E dela ficou-me a grande inocência de acreditar. Acreditei que podia dar-te um céu para brincares e que a vida seria o que nós quiséssemos. Assim. Bastaria querermos, esforçarmo-nos muito, trabalharmos, e teríamos então o que desejássemos. Não coisas majestosas, roupas bonitas ou charretes, mas comida, comida gostosa e bem temperada, e um cavalo de cartão novo, se por acaso esquecesses o teu no quintal numa noite de chuva. Acreditei que a felicidade dos teus olhos a sorrir podia voltar aos olhos da tua mãe, aos meus e perdurar intocada nos teus. Acreditei em tantas coisas. Sabes, aproximo-me da vila e o que me espera é morrer um pouco mais. Preferia que não o soubesses, mas infelizmente nem isso posso esconder-te, porque um dia, quando te contarem a história da tua vida, dir-te-ão que numa noite de estrelas, o teu pai foi à vila e levou uma sova, dir-te-ão que havia poucos dias, no campo, tinha levado outra sova e que, com o peito enrolado numa ligadura, seguia o seu caminho sabendo o que o esperava. Não vou dizer-te, porque não o podem entender, que o teu pai avançava por ti, para que sobrasse uma réstia daquilo do que é mais forte, sempre muito mais forte. Dir-te-ão que o teu pai levou uma sova e que levou outra sova, e terás vergonha de mim. Os anos encarregar-se-ão de apagar tudo o que julguei ser certo e nunca foi, para ficar apenas o que aconteceu e, por fim, até isso ser também esquecido. Os anos apagar-me-ão, vais ver. E isso não me entristece, porque sempre soube que seria assim. Mas, é preciso dizer-te, nunca te quis sozinho. Se o fiz, não o quis fazer. Alegue, pequeno filho, livre. Entrei agora na vila. Olham-me as pessoas com boas noites atrastados. Sei que és muito novo para entender tudo o que te quero dizer, mas ao menos a palavra pai, de tudo isto, quero que recordes ao menos a palavra pai. Quero que me olhes nos olhos, mesmo quando já estiver desaparecido há muito e partilhe com a terra a sua solidão; quero que me aprendas e descubras o que pensei para ti nesta noite. Estou no terreiro. Entro na venda. Num lado balcão, o sorriso do demónio. No outro, o gigante dobrado com a cabeça do tecto.


Nenhum Olhar, José Luís Peixoto
Foto: Lilya Corneli

7 comentários:

APC disse...

Prefiro ler-te a ti.
Beijos

Anónimo disse...

Que texto tão maravilhosos e infelizmente (ou felizmente) tão verídio...corremos tanto, procuramos tanto ser felizes e fazermos felizes quem amamos, tentamos o que achamos certo em prol da suposta felicidade...e as vezes estamos tão enganados!...
Beijinhos linda***

ROSASIVENTOS disse...

chocolate

e

sapato de ferro



chocolate


/fantasmas...

un dress disse...

eterna e só.

a dor do amor.

a dor.

a doer.

de profundo (re)conhecimento.




.beijO

Por entre o luar disse...

Que lindo...extenso mas vale a pena ler=P

beijinhos:D e sorrisos:D

V. disse...

Algo me diz que vou devorar este livro!!

:) *

V. disse...

ah, e fiz questão de não ler para não estragar a surpresa! ahahahah! beijinho menina*

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