'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

14 dezembro, 2007

A insuficiência do amor (Encruzilhadas)


[Em resposta ao desafio da Piedade do blog Olhares em Tons de Maresia, fica aqui o texto.
Substituí os títulos em inglês por português para tornar as coisas um bocadinho mais fáceis... ]


não sabia se era esta a viagem da sua vida. não não sabia. nem tampouco se algum dia iria regressar.
- puta! mas quem é que ela pensa que é?
não pensava que era ninguém. e era esse o problema. sim, era isso mesmo. não era ninguém. e sabia-o desde muito nova. quando era pouco maior que a filha da sua irmã. a sua irmã pequena frágil já mãe. a sua irmã das noites escuras, do silêncio, a sua irmã dos medos em forma de aranhas no cimo do guarda-fatos de bonecas em caixas fechadas.
- não as podem abrir. pensam que elas são para estragar?
- mas mamã...
- devem pensar que tenho dinheiro para comprar outras... vão mas é lavar os dentes e cama que daqui a bocado ele está aí.
ele. ele. ele. o medo. de desiludir.

hoping not to desappoint. começava ela a aprender nas aulas de inglês. era das melhores alunas. talvez a melhor. mas sentia-se ninguém. à hora do recreio ficava sentada nas escadas frias e cinzentas da entrada para a escola. sozinha. o medo de falhar. desappoint. não a deixavam jogar ao "arrebenta". ou ela não queria. a memória atraiçoa-a.
- bucha!
vergonha. lágrimas no do pescoço. negro. sangue.
ficou sangue. foi sempre o que ficou da sua curta vida negra. sangue.

e agora esta viagem que não pediu. nunca pediu. lembrava-se daquelas outras em família. família. ela que nunca soube verdadeiramente o que isso é. que se sentava à mesa das ceias de natal em silêncio falado. ninguém a ouvia nem ela ouvia ninguém. pois claro que não. pratos telemóveis contas notas dinheiro.
- tenho mais do que tu!
- não não tens!
- (deve pensar que é bom. mora num barraco, a filha não trabalha, só anda enroscada com o namorado no chão da sala e mesmo assim deve pensar que é bom...)
não, ela nunca soube o que era isso de uma família.
- e tu nunca mais arranjas um namorado?
- quando eu era da tua idade... ai lembro-me como se fosse hoje. podia ter os que quisesse.
raiva. vergonha.
e vidas sem sentido.

sentada no assento já velho do comboio olhava a noite a chegar lá fora. conseguia quase cheirar o frio que se entranhava nas ondas do mar, nas dunas ali tão perto. quase as podia tocar.
- sou uma princesa não vês?
- anda mas é ajudar-me a limpar o chagão!
- uma princesa avó...
metamorfose. quase. talvez tenha sido isso que sempre quis. transformar-se. não sabia se na princesa dos seus seis anos. mas outra coisa. estava cansada daquele corpo. cansada. o seu corpo já velho de 20 anos. o seu coração em cinzas. pó. assim ficam as coisas mortas inutilizadas desfeitas. com teias de aranha. escuras. até que desaparecem. apetecia-lhe pegar num auscultador e sentir o seu coração. tinha a certeza que não ouviria nada.
(- leva-se alguém para o hospital para consertar uma coisa morta?)
não, já nem isso ela tinha.

a noite chega finalmente. sente-se aconchegada. encosta a cabeça ao vidro frio e lembra-se do seu quarto. voltaria alguma vez? era no pé de cabeceira que tantas e tantas vezes se ajoelhava à espera de milagres.
- se pedires com muita muita força acontece!
e ela pedia com a força dos seus sonhos de criança. a resposta chegava umas horas mais tarde.
- puta

manhãs de silêncio. (re) começar. o mundo claro novamente. todos os dias. a noite ficava guardada nos seus ouvidos. acumulava-se dentro dela, escurecia, destruía o seu coração. cinza. pó. negro. morte.

e sorrisos. falsos quase sempre. forçados. a desejar que se abrissem braços. abraços. e saísse a confissão. um dia perfeito. nunca soube o que isso é.

partia agora já morta. para trás deixava apenas um bilhete em cima da mesa velha da cozinha onde tantas e tantas vezes calou com a mãe. apenas umas palavras em jeito de obrigada:
"O amor nunca é suficiente".

[Foto: Katia Chausheva]

14 comentários:

V. disse...

Estou absolutamente sem palavras...

Um beijinho*

Andreia disse...

:) ....
Beijinho! E um abracinho!! ***

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Antes de mais, quero agradecer o teres aceitado o meu desafio.

como posso constatar, aqui tesn um texto muito bem escrito, muito crú. muito real (ficcionado ou não, nem isso interessa).

estou boquiaberta e orgulhosa de ti...

Chá de Canela disse...

Absolutamente arrepiante!
Ficou demonstrado que és uma mulher de desafios e que sempre consegues corresponder a eles com êxito!
Adorei o texto...a tua escrita simplesmente tão característica de TI!
Beijinhos

Anónimo disse...

UAU!Muito bem escrito.real.quase que sentimos na pele.e no coração*

Conselho:começa a escrever mais coisas tuas.é muito bom de se ler :)

Beijinhos

APC disse...

Um texto fantástico. A exigir o início de um livro.
Beijos miúda dos olhos d´água.
Já com novo endereço, terás, por favor de emendar.

un dress disse...

partia agora já morta.

escrevi hoje mais ou menos isso

embora não saiba onde.

mas talvez na pele.

sim. sim. seguramente.



~

Por entre o luar disse...

Lindo de verdade... beijinhos para a menina dos olhos de água...:)

~pi disse...

insuficiente. pois.

e quando não chega

a ser

não será pior ainda !?

joão marinheiro disse...

Abraço-Te. (Posso)

Mateso disse...

A solidão dói, dói quando se cresce só e dói mais quando se está só e se é crescido...
Possuis uma escrita precisa e bonita.
Os meus parabéns.
Desejo-te umFeliz Natal em companhia...
Beijo.

Andreia disse...

Mateso:
Obrigada Mateso. Um Natal muito feliz também para ti :)

João:
Se há coisa a que eu raramente digo que não é a um abraço! Especialmente porque parece que eles agora escasseiam... Por isso, sim, podes claro! :)

~PJ:
Sim, antes a insuficiência do amor do que a sua inesxistência.

Por entre o luar:
:)

Un dress:
... Espero que existam borrachas especias que consigam apagar essas coisas menos boas que de vez em quando escrevemos na pele... Um abraço!

Spectrum:
Os Livros são sagrados ;) Miuda... Gosto!!! :) :) (Endereço alterado)

Vertigo:
Obrigada!! Vou tentar seguir o conselho ;)

Rosana:
Obrigada menina vizinha de desesperos laborais :)

Piedade:
Não tens nada que agradecer. Foi um prazer!! Obrigada eu pelas palavras!

Um beijinho a todos!!!

APC disse...

Ah, esqueci-me: não gostei do tom maternal da Piedade. Céus escreves bem melhor do que ela.

V. disse...

Só quem te conhece para saber, de facto, o valor que tu tens... a escrita é só mais um dos muitos pontos fortes. O maior deles talvez seja mesmo esse coração gigante que tu tens! :) E como diz quem sabe:

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental...


Ora, tu não precisas persuadir-te porque o sentimento está lá todo. Sem máscaras, técnicas, ou palavras bonitas. Ah, está lá, pois está... :)

Beijinho*

Arquivo do blogue