[Em resposta ao desafio da Piedade do blog Olhares em Tons de Maresia, fica aqui o texto.
Substituí os títulos em inglês por português para tornar as coisas um bocadinho mais fáceis... ]
não sabia se era esta a viagem da sua vida. não não sabia. nem tampouco se algum dia iria regressar.
- puta! mas quem é que ela pensa que é?
não pensava que era ninguém. e era esse o problema. sim, era isso mesmo. não era ninguém. e sabia-o desde muito nova. quando era pouco maior que a filha da sua irmã. a sua irmã pequena frágil já mãe. a sua irmã das noites escuras, do silêncio, a sua irmã dos medos em forma de aranhas no cimo do guarda-fatos de bonecas em caixas fechadas.
- não as podem abrir. pensam que elas são para estragar?
- mas mamã...
- devem pensar que tenho dinheiro para comprar outras... vão mas é lavar os dentes e cama que daqui a bocado ele está aí.
ele. ele. ele. o medo. de desiludir.
hoping not to desappoint. começava ela a aprender nas aulas de inglês. era das melhores alunas. talvez a melhor. mas sentia-se ninguém. à hora do recreio ficava sentada nas escadas frias e cinzentas da entrada para a escola. sozinha. o medo de falhar. desappoint. não a deixavam jogar ao "arrebenta". ou ela não queria. a memória atraiçoa-a.
- bucha!
vergonha. lágrimas no nó do pescoço. negro. sangue.
ficou sangue. foi sempre o que ficou da sua curta vida negra. sangue.
e agora esta viagem que não pediu. nunca pediu. lembrava-se daquelas outras em família. família. ela que nunca soube verdadeiramente o que isso é. que se sentava à mesa das ceias de natal em silêncio falado. ninguém a ouvia nem ela ouvia ninguém. pois claro que não. pratos telemóveis contas notas dinheiro.
- tenho mais do que tu!
- não não tens!
- (deve pensar que é bom. mora num barraco, a filha não trabalha, só anda enroscada com o namorado no chão da sala e mesmo assim deve pensar que é bom...)
não, ela nunca soube o que era isso de uma família.
- e tu nunca mais arranjas um namorado?
- quando eu era da tua idade... ai lembro-me como se fosse hoje. podia ter os que quisesse.
raiva. vergonha.
e vidas sem sentido.
sentada no assento já velho do comboio olhava a noite a chegar lá fora. conseguia quase cheirar o frio que se entranhava nas ondas do mar, nas dunas ali tão perto. quase as podia tocar.
- sou uma princesa não vês?
- anda mas é ajudar-me a limpar o chagão!
- uma princesa avó...
metamorfose. quase. talvez tenha sido isso que sempre quis. transformar-se. não sabia se na princesa dos seus seis anos. mas outra coisa. estava cansada daquele corpo. cansada. o seu corpo já velho de 20 anos. o seu coração em cinzas. pó. assim ficam as coisas mortas inutilizadas desfeitas. com teias de aranha. escuras. até que desaparecem. apetecia-lhe pegar num auscultador e sentir o seu coração. tinha a certeza que não ouviria nada.
(- leva-se alguém para o hospital para consertar uma coisa morta?)
não, já nem isso ela tinha.
a noite chega finalmente. sente-se aconchegada. encosta a cabeça ao vidro frio e lembra-se do seu quarto. voltaria alguma vez? era no pé de cabeceira que tantas e tantas vezes se ajoelhava à espera de milagres.
- se pedires com muita muita força acontece!
e ela pedia com a força dos seus sonhos de criança. a resposta chegava umas horas mais tarde.
- puta
manhãs de silêncio. (re) começar. o mundo claro novamente. todos os dias. a noite ficava guardada nos seus ouvidos. acumulava-se dentro dela, escurecia, destruía o seu coração. cinza. pó. negro. morte.
e sorrisos. falsos quase sempre. forçados. a desejar que se abrissem braços. abraços. e saísse a confissão. um dia perfeito. nunca soube o que isso é.
partia agora já morta. para trás deixava apenas um bilhete em cima da mesa velha da cozinha onde tantas e tantas vezes calou com a mãe. apenas umas palavras em jeito de obrigada:
"O amor nunca é suficiente".
[Foto: Katia Chausheva]
14 comentários:
Estou absolutamente sem palavras...
Um beijinho*
:) ....
Beijinho! E um abracinho!! ***
Antes de mais, quero agradecer o teres aceitado o meu desafio.
como posso constatar, aqui tesn um texto muito bem escrito, muito crú. muito real (ficcionado ou não, nem isso interessa).
estou boquiaberta e orgulhosa de ti...
Absolutamente arrepiante!
Ficou demonstrado que és uma mulher de desafios e que sempre consegues corresponder a eles com êxito!
Adorei o texto...a tua escrita simplesmente tão característica de TI!
Beijinhos
UAU!Muito bem escrito.real.quase que sentimos na pele.e no coração*
Conselho:começa a escrever mais coisas tuas.é muito bom de se ler :)
Beijinhos
Um texto fantástico. A exigir o início de um livro.
Beijos miúda dos olhos d´água.
Já com novo endereço, terás, por favor de emendar.
partia agora já morta.
escrevi hoje mais ou menos isso
embora não saiba onde.
mas talvez na pele.
sim. sim. seguramente.
~
Lindo de verdade... beijinhos para a menina dos olhos de água...:)
insuficiente. pois.
e quando não chega
a ser
não será pior ainda !?
Abraço-Te. (Posso)
A solidão dói, dói quando se cresce só e dói mais quando se está só e se é crescido...
Possuis uma escrita precisa e bonita.
Os meus parabéns.
Desejo-te umFeliz Natal em companhia...
Beijo.
Mateso:
Obrigada Mateso. Um Natal muito feliz também para ti :)
João:
Se há coisa a que eu raramente digo que não é a um abraço! Especialmente porque parece que eles agora escasseiam... Por isso, sim, podes claro! :)
~PJ:
Sim, antes a insuficiência do amor do que a sua inesxistência.
Por entre o luar:
:)
Un dress:
... Espero que existam borrachas especias que consigam apagar essas coisas menos boas que de vez em quando escrevemos na pele... Um abraço!
Spectrum:
Os Livros são sagrados ;) Miuda... Gosto!!! :) :) (Endereço alterado)
Vertigo:
Obrigada!! Vou tentar seguir o conselho ;)
Rosana:
Obrigada menina vizinha de desesperos laborais :)
Piedade:
Não tens nada que agradecer. Foi um prazer!! Obrigada eu pelas palavras!
Um beijinho a todos!!!
Ah, esqueci-me: não gostei do tom maternal da Piedade. Céus escreves bem melhor do que ela.
Só quem te conhece para saber, de facto, o valor que tu tens... a escrita é só mais um dos muitos pontos fortes. O maior deles talvez seja mesmo esse coração gigante que tu tens! :) E como diz quem sabe:
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental...
Ora, tu não precisas persuadir-te porque o sentimento está lá todo. Sem máscaras, técnicas, ou palavras bonitas. Ah, está lá, pois está... :)
Beijinho*
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