'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

25 novembro, 2007

No pé de cabeceira


[Deixo-vos com três poemas tirados de Degredo no Sul, de Al Berto,
o meu livro de cabeceira nos últimos dias]




rasgo o melancólico lume interior dos insectos
atravesso a sabedoria das infindáveis areias do sono
sou o último habitante do lado mitológico das cidades

por vezes consigo acordar
sacio a sede com a tua sombra para que nada me persiga
teço o casulo de cocaína escondo-me no mel da língua
lembro-me... fomos dois amigos e um cão sem nome
percorrendo a estelar noite noutro corpos

mas já me doem as veias quando te chamo
o coração oxidado enjanlou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém

ficou-me este corpo sem tempo fotografado à sombra da casa
onde a memória se quebra com os objectos e amarelece no
papel
pouco ou nada me lembro de mim
em tempos escrevi um diário perdido numa mudança de casa
continuo a monologar com o medo a visão breve destes ossos
suspensos no fulcro da noite por um fio de sal

partir de novo seria tudo esquecer
mesmo a nave que de manhã vem dar asas à boca recente do
sonho
mas decidi ficar aqui a olhar sem paixão o lixo dos espelhos
onde a vida e os barcos se cobrem de lodo

pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade


*****


Persiana de água

abro a persiana de água
o fogo desaba rumoroso sobre o mar
árvores de vento protegem os corpos
destapados... simulamos o sonho
consigo tactear o fundo queimado do espelho
onde me sento para te escrever... desvendo
a paisagem em redor da casa contigo dentro

espio a dor salgada das visões
que os dedos largam por cima da roupa
dentro das gavetas que não voltei a fechar
assusto-me
quando penso ouvir a tua voz de regresso
devorando o humilde sossego do coração

mas o lodo corroeu a sombra do rosto
diluiu a fresca lua tactuada no ombro apressado da noite
uma ave de fogo entra pela janela onde me debruço
ao abandono à desolação do dia a dia
costuro o olhar ao voo migrante dos pássaros
estendo a mão para o segredo dos tectos ou durmo
na ilusão de encontrar algum rosto
escondido sob o peso do branco bolor

a memória está perfumada de violetas
desprende-se dos pulsos escorre pela cal dos corredores
persigo-me
pela madrugada suja das palavras
com o pressentimento de ter morrido longe do meu corpo
encosto-me às esquinas disponíveis da cidade
amachuco a vida debaixo dos sóis que te evocam
oferecendo a espuma da boca a todos os desconhecidos


*****


5./1979

o junco entrançado das cadeiras conhece a memória do corpo
este demorado tempo de ausência... sobre a cama de areia
onde o amor de desenvolve o cheiro a poejo dos lençóis

a noite vem do esquecimento da voz
persigo-te com os dedos pelo vácuo
encontro o rosto amarelado nas forografias... despojos
do atormentado sono... perscruto o lugar
onde nunca mais voltaremos a cal insiste em revelar-me
outro rosto... lateja-me na boca um coração de papel
dissolve-se um desastre no escuro interior dos objectos

eis a última visão do deserto... um mar triste
uma canção de abandono sobre a boca... o sonho
invandindo a vida que me enche de sede
mas vai chegar o inverno
o corpo afrouxar-se-á como o fazem algumas flores
ao cair da noite dobram-se para o fulcro morno da seiva
e cismam um sonho de ave que só a elas pertence

são horas de ter medo meu amor
cansadas horas quebradas nas mãos... horas de alucinação
estes dias abertos à corrosão do ciúme... estas janelas
derramando sémen à velocidade do surdo grito... são horas
horas de fingir que nos amámos

lentamente os dedos aperfeiçoaram a arte de pararem
sussurrantes sobre o corpo... não a deslizarem
não a percorrerem o espaço da veloz insónia
as mãos redescobriram o silêncio inesgotável da escrita
praticam esse ofícia muito antigo
de na imobilidade da fala tudo desejarem
[Foto: Inês Sacadura]

3 comentários:

joão marinheiro disse...

Al Berto, faz pouco tempo que o descobri, um ano e picos por ai. Fascinam-me as suas palavras tambem
abraço daqui jundo do mar frio já.

Maria del Sol disse...

"pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade"

Palavras que deixam qualquer mortal sem fôlego :)

Beijinhos

Abssinto disse...

Boas escolhas. Al Berto foi um anjo nocturno que ficou entre nós durante alguns dias...
bj

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