'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

25 abril, 2007

Delírio

escorre-me sangue dos dedos. passa pela frincha da porta. aquela que está fechada. que me levaria até ati. Não se espeta um coração acabado de desabotoar. não vá ele fechar-se para sempre com o choque.
alguma vez te disse que tinha o coração abotoado até ao último botão? alguma vez? que durmo com a janela aberta porque tenho medo do escuro. que sempre achei que
- a água é branquinha, avô!
alguma vez?

que gosto mais do silêncio do que das palavras? elas são traiçoeiras. mentirosas. sim, são as palavras que são mentirosas, não tu. agora sei. se ao menos te tivesse olhado nos olhos...

que tenho medo de palhaços porque
- têm uma boca muito grande avô
que gostava de ter sido bailarina cantora actriz, sei lá.
- Lá lá lá lá lá lá lá lá
trauteava eu em frente ao espelho com o meu pente cor-de-rosa de menina na mão. alguma vez sequer cheguei a cantar para ti?
- Lá lá lá lá lá lá lá lá
que continuo a querer.

mas agora o sangue escorre-me pelos dedos.
será isto a morte? sangue que corre dos dedos em direcção a uma porta fechada?

"- Não te sujes pimpolho
instalava-se no lugar do meu pai a explorar a terrina, a distribuir o almoço, ralhava à minha mãe
- Vais ficar a pensar nele toda a vida pequena?
e ao
- Vais ficar a pensar nele toda a vida pequena?
o meu pai em casa de novo, à mesa connosco apesar de não ter colher, não ter prato, no sítio onde a minha mãe o interrogava
(ela nesses momentos duas palmas nas bochechas, os olhos iguais às lentes do fotógrafo)
- Porquê?
ao passo que o meu pai não ombros nem olhos, cotovelos que desdenhavam
- Trambolhos
o que ficou dele foi um pincel de barba no lavatório com espuma seca nos pêlos, cruzetas que a minha mãe remexia no armário a questioná-las
- Porquê?"

Excerto: António Lobo Antunes

6 comentários:

Bruna Pereira Ferreira disse...

Vou escorrer o meu lencinho de renda e de pano.... E já volto.

(Regresso)

Se me continuas com estes posts nunca vou aprender a controlar as emoções...

(Sim, já sei, essa é a imagem de marca....)

:)

Anónimo disse...

Eu hei-de amar uma pedra.

:)

Beijinhos*

Beatriz disse...

Há então que estancar o sangue. Se as palavras são traiçoeiras (porque dizem o não deviam, porque não dizem o que deviam, porque significam o que significam e que as vezes não significam assim tanto), também o sangue, também as feridas, abertas ou fechadas. nos traem a nós. Tantas vezes abertas para a luz do exterior mas fechando-nos e tornando-nos medrosos. Medrosos nas palavras. Tentados a gostar mais do silêncio do que da nossa voz.
Quero dizer que embalar-nos na nossa ferida escorrente, nos males dos nossos dias, sem um fim... alastra a ferida. Adia a cura.

musalia disse...

os olhos também mentem...vestem-se de furta-cores para fugirem, disfarçados. e mudam de cor, conforme o brilho dos dias...
e têm palavras decalcadas em sorrisos...

Inês disse...

eu gosto muito deste senhor...
sinto-o desconcertantemente humano, verdadeiro e frágil...
nem sei bem explicar...

*

Andreia disse...

Sim Inês. Acho que é o humanismo dele que o faz escrever coisas tão bonitas.
Bem vinda :)

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