'Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! E eu acreditava. Acreditava porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis'

26 março, 2007

Certamente por isso


Seriam castanhos escuros, quase pretos, mas não ainda pretos.
Seria por isso que a menina, não ainda mulher, talvez nunca mulher, veria o mundo como as crianças acabadas de ser arrancadas do ventre da mãe: a preto e branco, dizem.
Ou seria talvez das lágrimas que tantas e tantas vezes lhe subiam aos olhos e lhe enublavam a vista.
Seria certamente por isso.
E lhe escorriam pelo rosto de menina. Não ainda mulher. Quase mulher.
Seria certamente por isso.
Lágrimas de chorar, lágrimas de sorrir, lágrimas de sentir.
Seria certamente por isso.


E não me serviu de nada avisá-la mãe.
Como não teve qualquer resultado dizer ao meu irmão, assim a mãe vai morrer, Paulo.
Porque ele lá na vida dele, a desvalorizar, a dizer-me que também não era bem assim, a sossegar-me, garantindo que a mãe e o pai lá tinham a sua maneira de se entenderem, ele só com olhos e ouvidos para a namorada, ele a anunciar-me que ia ter um filho e assim já podia casar com ela, ele todo na vida dele, prioridades do coração, que não é afinal tão grande como nos ensinam, não afinal tão grande que lá caibam muitas coisas ao mesmo tempo.

E jurei que não haveria de morrer como a mãe, mãe.

E que nenhum homem que levantaria a mão, nem me espetaria um hálito grosso de cerveja, nem me haveria de invadir, tocar, irromper em mim como um carroceiro sujo desembestado.
E não haveria de ir às compras, fazer almoços, aspirar porcaria, despejar cinzeiros, a fungar lágrimas escondidas.
E não me abriria nunca como as conchas, pela força enferrujada de uma faca romba, a forçar-me a carne desistida. E não quereria ver, alguma vez, o que nunca vi mas adivinhei anos a fio, as noites todas em que pensava que a mãe estaria viva ou já defunta, um boneco de pano nas mãos dele, pernas abertas e rosto para o lado, para a parede branca, um trapo a ferrar os lábios para não lhe ouvirmos um ai, não me hão-de romper com nenhum chicote de cavalo cego.
Queria dizer-lhe que nas minhas noites não há animais que me esporeiam, que não me fico em silêncio para não me ouvirem suspirar. Queria ter-lhe dito que me avisei a tempo e não hei-de morrer como a mãe, mãe.
Não fecho os olhos com força de cada vez que me deito, não tenho de esconder um corpo lancinante, adormeço em paz, aquecida, confortada, e os braços são para abraçar, mãe, fique sabendo, as pernas são para enroscar, os peitos para encostar, ao de leve, a pele toda para arrepiar, os lábios para sorrir, os olhos para ver de frente, ver de perto, sem medo, mãe, porque é possível embora seja tarde para si, é possível não morrer as noites todas, sem medo de mostros de caverna, de pêlo grosso que nos fere a alma todas as noites, riscos de sangue novo por cima de riscos de sangue velho, todas as noites de uma vida, todas as noites dentes e saliva e um punho de garras, abertas fechadas abertas, que desaba sobre nós.
E por ler coisas como estas. Seria certamente por isso.
(Texto: Rodrigo Guedes de Carvalho)
(Foto: Barbara Angel)

4 comentários:

Bruna Pereira Ferreira disse...

Lembro-me como se fosse hoje. Nós as duas na aula do Hélder Bastos, na Faculdade, a dizer mal não sei de quem, como de costume.... E dizia o mestre do online para a fila da frente: "No futuro todos teremos pelo menos um blog". E olha, cá está o teu... Eu sabia, amiga!

Bem-vinda à comunidade blogueira.
Do Porto a Lisboa é só uma página... :)

Andreia disse...

:) Sim Bruna, lembro-me dessas aulas como se fosse hoje. Foi numa delas que estreamos as cadeiras da fila da frente, que conhecemos o Hugo, que descobrimos que não era normal não lermos o Expresso e estarmos num curso de jornalismo...
Lembro-me também de pensar que nunca teria um blog! Para que é que eu queria um blog? E olha, afinal aqui está ele.

Sim, de Porto a Lisboa é só uma página. Mas continuo a preferir os caminhos, que do Porto a Gaia são irremediavelemente curtos... ;)

Anónimo disse...

Pois é, e de lágrimas nos olhos quase me deixaste tu com este primeiro texto. Se assim começas eu nem quero imaginar o que vem por aí... :)

Sim, ainda que num curso diferente onde vai tudo dar ao mesmo [ nessas mesmas aulas ] também eu dizia para os meus botões que nunca iria ter um blog e que não sabia trabalhar com estas tretas modernas... Eheheh! Entre Porto, Braga, Gaia ou Lisboa... estamos sempre a uma página de distância e tu, menina dos olhos de água, já estás linkada! :)

Só um pequenino à parte: Eu também não costumava ler o Expresso! LOL! [ Acho que começo agora a perceber algumas das nossas pancas comuns... o nunca visto! Eheheh! Beijinhos* ]

joão marinheiro disse...

Olá.
Profunda e sentida a escrita do Rodrigo, de dificil leitura diria até...
Bem vinda,
Abraço com ventos e maresias

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